ONDE NASCE A PRIMITIVO?

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*texto publicado em vinhosunica.com.br

Estamos de volta! Como discutimos na última coluna, rastrear a origem de uma uva é um desafio, mesmo com o avanço do sequenciamento de DNA. A origem usualmente se define muito menos pelo DNA, do que pelo estudo da antropologia e dos movimentos migratórios humanos, uma vez que as vinhas foram propagadas dessa maneira. Portanto, não podemos dissociar a história do vinho da história humana e da evolução que os acompanha.

Mas como se descobre tudo isso? É o que vamos ver na coluna deste mês. Para ilustrar, abordaremos a história da internacional e migrante uva Primitivo (também conhecida como Zinfandel) e traremos as múltiplas investigações sobre as origens dessa uva, tão popular no Brasil.

A PRIMITIVO​

Nossa exploração começa nos primórdios do século XVIII, na região da Puglia, sul da Itália. Nessa época viveu uma figura curiosa, chamada Francesco Filippo Indellicati, que desempenhou um papel crucial na história do vinho na região. Em suas anotações, preservadas nos registros históricos da cidade de Gioia del Colle, na Alta Murgia (próxima da capital da Puglia, Bari), ele faz referência a uma uva específica – a Primitivo.

O nome Primitivo pode ser traduzido do latim como “primeiro a amadurecer”.

Este nome não foi escolhido ao acaso por Indellicati. Ele observou que a variedade era capaz de amadurecer mais cedo em comparação às outras em seu vinhedo. Antes de ser conhecida por este nome, acredita-se que era chamada de Zagarese, um nome que sugere uma possível conexão com a capital da Croácia, Zagreb.

A popularidade da Primitivo começou a aumentar na Puglia em torno da década de 1820, e foi no restante do século XIX que a casta começou a ganhar uma identidade sólida. Foi nesse momento que a palavra Primitivo foi oficialmente consolidada como seu nome.

Uva Primitivo

A Zinfandel

Já a uva Zinfandel, frequentemente considerada a variedade emblemática da Califórnia, nos Estados Unidos, tem sua origem pontuada por debates acalorados e reivindicações diversas. Enquanto alguns afirmam que ela é nativa da região, outros sustentam que ela foi trazida para a Califórnia por Agoston Haraszthy, um imigrante húngaro, na década de 1850.

No entanto, os documentos históricos sugerem uma narrativa diferente. A aventura americana da uva Zinfandel parece ter começado bem antes, mais precisamente na década de 1820. Na época, a uva encontrou seu caminho até a Califórnia como uma videira sem nome, enquanto parte da coleção imperial do Palácio de Schönbrunn, em Viena. Até o final da década de 1820, começou a ser referida como Zinfardel, com R no lugar do N, passando por pequenas alterações ortográficas ao longo das décadas seguintes.

O apelido “Zinfandel” provavelmente deriva das raízes da Europa Central e é produto da confusão em torno das várias videiras importadas da Europa. Na Áustria, existe uma uva branca chamada Ziafrongia, levando alguns a acreditarem que a Zinfandel ganhou seu nome por alguma associação a essa variedade, e que, por isso, originalmente era uma casta branca. Outro fato que atesta essa narrativa é o fato de que a sua contraparte americana era chamada de Black Zinfandel.

Nossa história dá outra reviravolta por volta de 1850, quando ela é trazida de New England, na Costa Leste, para o outro lado da então nova nação, na Califórnia. À época, achava-se que a introdução da videira nos EUA veio da coleção de um húngaro chamado Puruc, que por sua vez foi montada em 1819, quando a Dalmácia, na atual Croácia, fazia parte do Império Austríaco. Isso dá alguma credibilidade à ideia de que a Primitivo, ou a uva conhecida como Primitivo na Puglia, pode ter sido transportada, não sendo autóctone do Sul da Itália. Mas isso é algo que só veio a ser esclarecido algumas dezenas de anos mais tarde, como veremos mais pra frente.

Quando a Zinfandel pode vir a ser Primitivo

Em 1967, durante uma visita à Puglia, o patologista de plantas Austin Goheen se deparou com uma descoberta intrigante. Ele ficou impressionado com a semelhança notável entre duas variedades de uva: a italiana Primitivo e a californiana Zinfandel.

A casual observação de Goheen desencadeou uma série de investigações científicas na década de 1970. Estudos moleculares foram realizados para comparar as duas uvas, e os resultados revelaram um paralelismo surpreendente: os perfis moleculares do Primitivo e do Zinfandel eram idênticos.

A partir daí tomou lugar uma onda de debates conhecidos como a ‘batalha do Zinfandel’. De um lado estavam os produtores californianos de Zinfandel e, do outro, os produtores de Primitivo da Puglia. A controvérsia se centrava no direito ao nome e na origem dessas uvas.

O enigma foi desfeito pela pesquisadora Carole Meredith da Universidade de Davis, em 1994, quando uma análise de DNA finalmente confirmou que as duas uvas eram, de fato, geneticamente idênticas. Seguindo essa descoberta, a União Europeia concedeu aos produtores italianos de Primitivo o direito de rotular seus vinhos como Zinfandel, adicionando uma nova camada à controvérsia.

No entanto, mesmo após a decisão, a disputa persistiu, e o debate sobre a origem e a nomenclatura dessas uvas icônicas continua até hoje sem uma conclusão definitiva. Aqui, humildemente, vamos tomar um lado.

Zinquest, Tribidrag e a busca pela origem Croata

Em 1998 foi iniciada uma busca pelas verdadeiras raízes do Zinfandel. A jornada, apelidada de ‘Zinquest’, levou uma equipe de pesquisadores das Universidades da Califórnia e de Zagreb, liderada por Meredith, a uma intrigante jornada pela costa da Dalmácia. Em meio à missão de coletar e analisar os perfis de DNA de antigas vinhas locais, em um momento de grande descoberta em 2001, a uva conhecida como Crljenak Kaštelanski de um vinhedo ao norte de Split foi encontrada para corresponder ao perfil de DNA do Zinfandel.

Esse achado remeteu os investigadores de volta à pesquisa de uma amostra de herbário de uma uva conhecida como Tribidrag. Esta uva, cujo DNA correspondeu ao de Zinfandel/Primitivo/Crljenak Kaštelanski/Pribidrag, foi uma vez uma variedade reputada na região de Split. Intrigantemente, a etimologia de Tribidrag sugere um amadurecimento precoce, assim como o da Primitivo.

A ‘Zinquest’ não apenas identificou as origens antigas do Zinfandel, mas também estabeleceu sua relação com várias variedades autóctones da Dalmácia, incluindo Plavac Mali, ancorando ainda mais suas raízes na Croácia. Porém, como nada nessa aventura de historiografia de uma casta é simples, uma descoberta em 1959, seguida de achados no final dos anos 2000, levou a ainda outra reviravolta.

Kratosija e Montenegro, o berço possível

Em 1959, o ampelógrafo croata Marco Ulicevic notou as semelhanças entre a montenegrina Kratosija e a Zinfandel – décadas antes dos estudos de Carole Meredith. Apesar dessas observações, os testes de DNA apenas confirmaram essa identidade comum em 2008.

A história da variedade de Montenegro se aprofundou ainda mais com a teoria do professor italiano Attilio Scienza, que é uma das grandes autoridades em genética de vinhas no mundo. Em seu livro de 2017 “La Stirpe del Vino”, Scienza apresenta evidências sugerindo que a maior variabilidade genética desta videira é encontrada em Montenegro, não na Croácia. Segundo Scienza, a anterioridade de uma casta pode ser assumida quando o local ou região tem a maior diversidade/variabilidade de biotipos e clones. E isso aponta Montenegro como o verdadeiro berço da protagonista de nossa história. Em essência, Kratosija é ancestral de todas essas videiras que conhecemos hoje como Zinfandel nos EUA e Primitivo na Itália.

Adicionalmente, registros da época do Renascimento, no século 14, da Sereníssima República de Veneza, referenciam uma videira chamada “Cratosia” (Kratosija). Esses documentos incluem, entre muitas informações, diretrizes super meticulosas para seu cultivo que nos remetem à Primitivo/Zinfandel. E tudo isso nos leva, finalmente, à conclusão de que a versão montenegrina é a original.

Agora pense que, se esse apanhado de informações que apresento aqui é a versão resumida da história, o ofício de determinar as origens das variedades viníferas não é nada fácil. De fato, é um trabalho de extremo rigor e, sobretudo, de paciência. Mas assim, pelo menos, temos bastante assunto para falar. Até a próxima!

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